sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O lamismo


O Largo, mesmo antes da reforma preconizada pela administração do Prefeito Pereira Passos, nos primeiros anos do século XX, já era ocupado por um comércio importante, incluindo aí dois Cafés tradicionais: O Lamas e o Araponga, sendo o último tradicionalmente especializado em comidas frias, bebidas nacionais e estrangeiras, além de também ser o depósito do então renomado “Leite Rio Negro”. Porém, quem bravamente vem resistindo a reformas e a drásticas mudanças econômicas é o Café Lamas, que, além de não ter fechado nunca suas portas (desde 1874), mantém o espírito boêmio e hedonista que lhe serve de cartão de visitas. Até as obras do metrô da década de setenta, o Café ficava no Largo, tendo depois sido transferido pro seu endereço atual, na Rua Marquês de Abrantes. Como de hábito, abre todos os dias, só parando em dia de Natal e na segunda e terça de carnaval.

Muitos foram os intelectuais e artistas a utilizá-lo não só como palco de inúmeras farras, mas, também, como escritório e (pasmem!) casa de penhores. Sim, houve um tempo em que o proprietário aceitava o empenho de relógios, dicionários, tratados de Direito e afins como garantia para pequenos empréstimos. Aliás, de forma curiosa, o fundador do Café, Constantino Lamas, quase não aparecia por lá e, quando dava as caras, não bebia.

De todas as presenças ilustres que pelo Lamas passaram (e ainda passam), podemos citar, entre tantos outros: Machado de Assis, Afrânio de Melo Franco, Getúlio Vargas (quando ainda era deputado), Rubem Braga, Haroldo de Campos e Luiz Edmundo, o último, autor do livro “O Rio de Janeiro do meu tempo”, de 1900, que, através de uma compilação de crônicas cheias de conteúdo histórico, traça um corte etnográfico de nossa cidade no início do Século XX. Foi Edmundo quem criou o termo “Lamismo”, comparando a frequência ao Café a uma religião. As diretrizes para participar do 'culto' eram:

1) Beber (o chopp)
2) Postar-se no altar (as mesas)
3) Jogar sinuca na sacristia (localizada no salão dos fundos do antigo Lamas)
4) Saber rezar (conversar) com fervor

De todas as histórias pitorescas em torno do local, duas chamam particular atenção: a primeira data da inauguração da estátua de Duque de Caxias, que ficou pelo Largo entre 1900 e 1955. A ocasião era pra lá de ilustre e, para romper a fita inaugural, estiveram presentes os presidentes do Brasil (Campos Sales) e da Argentina (General Rocca). Pois bem, na madrugada anterior, já em nível etílico avançado, um grupo de lamistas antecipou-se ao ato oficial, realizando uma ‘cerimônia’ de saudação à Duque de Caxias, com direito a rompimento da fita inaugural, tudo no maior deboche. Claro que isso não impediu que no dia seguinte a cerimônia transcorresse normalmente. A segunda história (também do início do Século XX) data da vinda de Santos Dumont ao Rio de Janeiro, mas, para contá-la, temos que lembrar que, na esquina que delimita o Largo com a Rua das Laranjeiras, existiu, nos primeiros anos do Século XX, um rendez-vous chamado Parque Fluminense, um vasto parque de diversões, no estilo Luna Park de Paris, com rinque de patinação e teatro, por onde passaram inúmeras companhias estrangeiras. O local era frequentado pela alta roda e visado pelos lamistas (principalmente os menos abastados). Pois bem, Santos Dumont estava chegando da França, logo após haver descoberto a direção dos balões, e sua presença provocou um frisson de proporções estelares. Para manter o status de local antenado às demandas culturais da cidade, os proprietários do Parque Fluminense ofereceram ao aviador um espetáculo em sua homenagem, regado a muito luxo e riqueza. Enquanto isso, na sala de justiça (ops, no Lamas), um lamista chega ao Café na companhia de um sósia do Santos Dumont tão perfeito, mas tão perfeito, que em poucos minutos havia uma avalanche de boêmios querendo acompanhá-lo ao Parque, para usufruir, nem que por uma noite, das delícias do local. Como de fato o moço muito se parecia com o original, a comitiva não encontrou problemas em entrar no recinto e, ao ser convidada pra ocupar o camarote do teatro, requisitou, antes, algo de sólido e uma chamagnha gelada, pois o Sr. Dumont havia jantado cedo e era provido de grande apetite. É claro que no final chegou o original pra acabar com a brincadeira e alguns dos boêmios saíram do Parque com ferimentos leves, mas, em compensação, com a alma lavada. Diz-se que em São Paulo um grupo de estudantes teve o mesmo comportamento pilhérico de escolher um colega para se fazer passar pelo aviador.

Até hoje o Lamas é muito festejado pela intelectualidade e pela classe artística, tendo mantido o elán mesmo quando o Rio de Janeiro deixou de ser a capital e houve um esvaziamento da clientela do palácio presidencial do Catete. A sensação que se tem é a de que o tempo, apesar de passar, não mexe em determinadas estruturas que compõem o entrelaçamento social do local. Só pra dar um exemplo disso, outro dia, vi no facebook de um amigo umas fotos da confraternização em torno do último expediente de um dos garçons antes de sua aposentadoria. O clima era de festa e os habitues de hoje só vêm a confirmar que o lamismo é uma seita que só se fortalece.

Fontes:
·Perergrino, Umberto: Crônica do bairro do Catete: histórias e vivências. RIOARTE, 1986.
·Edmundo, Luiz: O Rio de Janeiro do meu tempo. 1900.

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