segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Atrás do bonde elétrico só não ia quem já tinha morrido


Estava eu a procurar referências sobre o Largo nas obras dos grandes mestres da literatura brasileira e me dou conta de que o mais interessante neste processo é justamente ver como momentos pontuais da história civilizatória daquelas bandas foram por eles retratadas. Mas antes de falar das pérolas dos mestres, é bacana pensar que, desde que entraram em circulação no trecho entre a Rua do Ouvidor e o Largo do Machado, em 1868, os bondes substituíram as diligências, dando um cunho coletivo ao conceito de transporte, sem perder as reminiscências, como a tração feita por burros. Ao todo, eram nove as empresas que prestavam esse serviço, sendo a Jardim Botânico (conforme falado em postagem anterior) a maior de todas, com uma frota de 90 bondes e 1300 animais. Foi assim por mais de duas décadas, até que em 1892 acontece a viagem inaugural do primeiro bonde elétrico de quatro rodas com a presença do presidente Marechal Floriano Peixoto. Como a gente sabe, mas às vezes esquece por puro distanciamento histórico, a eletricidade naquele tempo era um assombro, um espanto, um sinal de progresso, que trazia consigo uma aura ao mesmo tempo fascinante e assustadora. A prova disso é que tinha escrito nos espaldares dos bancos a seguinte mensagem: “A corrente elétrica nenhum perigo oferece aos senhores passageiros”. Bastante sintomática desse estado de contemplação é a descrição feita por Machado de Assis sobre o impacto nele provocado ao assistir à performance do motorneiro que conduziu a viagem inaugural: “Sentia-se nele a convicção de que inventara não só o bonde elétrico, mas a própria eletricidade”. Percebemos, em apenas uma frase, a dimensão da recepção da novidade por aqui. Já Arthur Azevedo, munido de um escárnio que lá no fundo parecia esconder um certo temor, declarou: “Estou spleenético e tétrico/Sorumbático e sombrio/Vi de perto o bonde elétrico/Não faço versos, não rio”. Provavelmente para animar os passageiros e dissolver o clima de tensão, nessa época, na fachada da Estação do Largo do Machado, tinham mensagens que associavam o transporte a uma ideia de frescor e escapismo: “Bondes em quantidades para as praias do Leme e Ipanema. O luar é encantador, sendo as noites muito frescas, graças aos ares do alto mar”. O fato é que, passado o susto inicial, os bondes se firmaram como um importante meio de transporte coletivo, e, também, de agenciamento de programas por parte das prostitutas que atendiam nas pensões dedicadas a esta prática, localizadas, em sua maioria, no trecho entre a Lapa e a Glória. As moças angariavam clientes no ir e vir dos trilhos e já saltavam com os mesmos nas portas dos estabelecimentos, oferecendo seus serviços já em terra firme, naturalmente. Mas não só às profissionais do sexo que os bondes serviam no aspecto da comunicação interpessoal. As moças casadoiras das décadas de vinte e trinta, na saída das missas das 11h de domingo na Igreja Nossa Senhora da Glória, usavam os pontos dos bondes na Praça como local pra dar uma pinta e paquerar distintos cavalheiros, no intuito de futuramente dar-lhes a honra de suas prendas. Sem repetir nem chapéu nem vestido, elas aproveitavam a ocasião religiosa para fazer sua parada de elegância e, quem sabe, semear um bom casamento. Rezando com tanto afinco, muitas conseguiram. Depois que pararam de circular, os trilhos dos bondes foram encobertos pelo asfalto ou simplesmente retirados. Quando as obras do metrô avançaram rumo ao Largo, muitos trilhos que ainda estavam por lá soterrados foram definitivamente retirados. Mas sobre as obras do metrô eu falo depois.
Fontes:
. MOREIRA LEITE, Míriam; BARROS MOTT, Maria Lúcia; APPENZELLER, Bertha K: A mulher no Séc. XIX. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, SP, 1982
. PEREGRINO, Umberto: Crônicas do bairro do Catete: histórias e vivências. RIO ARTE, RJ, 1986.

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