quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Boletim do segundo dia de gravação (ou como entender que quando a gente relaxa tudo se encaixa)


Ontem na hora do almoço, saímos eu e David, nosso engenheiro de som, pra colher depoimentos na linha freestyle, já que os personagens que faltavam ser entrevistados eram todos do turno da noite. Pois então, ao chegar, David já veio gravando o som de um saxofonista lá quase na Rua do Catete, dando o toque captação de trilha sonora incidental e ambiental. Depois disso, enquanto caminhávamos em direção à Igreja, pra conversar com o Sacristão, vimos os estudantes que supostamente deveriam estar por lá à noite. Eles estavam de saída pruma ação estudantil da UJS (União da Juventude Socialista), mas marcaram um dez conosco e contaram suas peripécias no Largo. Falaram da Escola, que tem uns calabouços onde foi torturada muita gente, e comentaram que se sentem privilegiados de estudar num colégio com uma praça em frente, afinal, aqueles bancos, para além de orkut fora da internet, são uma espécie de porto seguro. Até a estátua que tem na frente da Escola eles sabiam de quem era, o que particularmente me deixou esperançosa nessa nova geração, não pela informação em si (afinal, hoje em dia, internet tá aí pra isso mesmo), mas, principalmente, pelo interesse em saber do que está à volta. Bem, terminado com eles, fomos à Igreja e descobrimos que ontem foi folga de nosso Sacristão, o que não nos impediu de ter uma deliciosa conversa com Vanessa, que trabalha na secretaria. Ela nos contou de um casamento de um povo gótico que rolou por lá. O noivo era um ator coadjuvante da Globo que ela não conseguiu lembrar o nome. O fato foi que, enquanto a noiva entrava, fazia-se a algazarra. O padre então parou tudo e disse que, da porta pra dentro, a festa era dos noivos e não dos convidados. Fez-se o silêncio e o casamento continuou. Saímos da Igreja e encontramos um senhor catador de papéis que disse que atravessar o Largo do Machado era equivalente a atravessar o Mar Vermelho. Depois dessa passagem quase bíblica e, para finalizar, fomos até Fada (foto), uma vendedora de cristais que tem um Centro Cultural em casa e que participou do maio de 68 em Paris. Assim que voltou da temporada européia, no ínício da década de oitenta, ela encenou a peça “Fada Lucinéia e o Rei da Prosopopéia”, de Lauro Benevides, lá no Laurinda Santos Lobo, em Santa Teresa. Aliás, foi depois disso que passou a ser chamada ostensivamente de Fada. Depois ela nos contou que sua paixão por pedras começou quando voltou do exterior, pois, como era poliglota, foi trabalhar em joalherias para se manter. Acredita que o trabalho que faz hoje em dia é muito mais significativo, pois leva em conta a questão espiritual das gemas e não necessariamente seu valor como jóia. Para ela, que trabalha por ali há 5 anos, o Largo é poesia, além de representar o local com o turismo mais discreto e "família" que existe no Rio de Janeiro.


Foi uma saída produtiva.

Depois conto mais.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Atendendo a pedidos (ou apontamentos sobre Burle Marx)


Os bailarinos que estão em processo de construção cênica sob a direção de Dani Lima apontaram a necessidade de um maior detalhamento sobre o projeto paisagístico do Burle Marx para o Largo do Machado. O fato é que me deliciei enquanto desvelava os detalhes. Espero que aconteça o mesmo com vocês. Seguem, portanto, alguns pequenos apontamentos retirados de uma revista de arquitetura:


1) A morfologia da praça brasileira difere bastante da encontrada em cidades européias. Aqui, os espaços secos, que caracterizaram as piazzes e plazas da Europa, são chamados de largos, pátios ou terreiros. Costumamos chamar de praça espaços ajardinados.

2) O projeto de Roberto Burle Marx para o Largo do Machado é de 1954 e uma característica interessante é a presença da árvore abricó-de-macaco, espécie amazônica trazida das Guianas pelo próprio paisagista. Ela tem muitos frutos e dá flores que saem diretamente do tronco (foto).

3) O projeto teve três grandes pilares: a preservação da vegetação especificada por Glaziou (autor do projeto anterior), uma composição renovadora, marcada pelos canteiros e bancos de concreto que os circundam e o desenho moderno do piso, que foi valorizado pelo mosaico de pedra portuguesa branca, preta e vermelha, com desenhos abstratos e de grande força conceitual.

4) Na década de 70, com a implantação do Metrô no coração da praça, o Largo sofreu novas mudanças. Foi feita uma área de acréscimo no alargamento da Rua do Catete para a implantação do respiradouro do Metrô. O projeto atual é diferente do original pela pedra portuguesa com contraste feito por apenas 2 cores (antes eram 3) e pela distribuição aleatória das árvores. Aliás, no local onde foi introduzida a Estação, foram retirados um canteiro e algumas árvores.

5) O projeto de reurbanização do Largo do Machado dotou a praça de rampas de acesso para deficientes, idosos e carrinhos e inseriu novas espécies vegetais no cenário, tornando o local bastante sombreado e, por consequência, inseguro. Na década de 90, a Fundação Parques e Jardins introduziu mesas de jogos em frente à Escola Amaro Cavalcante e um playground no canteiro próximo à esquina das ruas das Laranjeiras e Ministro Tavares de Lira.


Fonte: CADERNOS (vol 8) PROARQ -Programa de Pós-graduação em Arquitetura da UFRJ/2004.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

TOP 15 do Largo



Aderindo à moda das listas de 15 melhores discos, filmes, livros, e, naturalmente, puxando a brasa pra nossa sardinha, lanço minha lista:

1) Cinemas Largo do Machado 1 e 2 (que fecharam no início dos anos 2000), localizados dentro da Galeria Condor, pois, ainda adolescente, eu falsificava carteirinha do colégio para entrar no filmes proibidos pra minha idade;

2) Igreja Matriz da Glória, pois, já mais velha, acendia vela às segundas antes de ir pra aula de teatro na CAL, no Cosme Velho;

3) Salão Júpiter, na galeria do Teatro Cacilda Becker, afinal, por anos, fiz amaciamento no cabelo ali;

4) Ponto de ônibus em frente à galeria do Cinema São Luíz, pelos incontáveis 422 que por ali esperei;

5) Adega Portugália, pelos chopps com diferentes galeras;

6) Kombi na Gago Coutinho, pela cerva de garrafa com diferentes galeras;

7) Parque Guinle, por sempre ter sido um cenário perfeito para o romance;

8) Árabe, pelos motivos de sempre;

9) Salões de beleza do segundo andar da galeria Condor, por terem me salvado algumas vezes, quando eu tava com pressa e só queria pintar as unhas;

10) Bob's, pelo clássico lanche de depois do cinema, na adolescência. Mais especificamente, pelo finado sanduíche de queijo com banana;

11) A barraquinha que vendia pedras semi-preciosas, pingentes e incensos localizada dentro do metrô em meados da década de noventa;

12) O restaurante japonês em cima de uma sinuca que tem ali na Rua Ministro Tavares Lira. O rodízio é justo e arrasa.

13) O mercadinho São José, pelos amigos das antigas e epifanias;

14) A academia no início da Rua das Laranjeiras, que já teve vários nomes e que fica perto da padaria Itajaí. Fiz dança afro ali um tempo;

15) O Banco do Brasil da Conde de Baependi, onde fiz saques altos para as diárias de filmagem de meu último curta. Ia igual uma mendiga pra não dar pinta de que carregava uma grana preta. A primeira conta-projeto a gente nunca esquece...
E pra vocês, quais são os TOP 15 do Largo?

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Resumão do primeiro dia de gravação dos depoimentos (e dia de São Cosme e São Damião)


Começamos o dia conversando com um gari. Ao perguntarmos o nome dele, ele disse: "Eu sou o dia de hoje". Ficamos um tempo em silêncio e ele disse: "Meu nome é Damião!" Claro que já vimos logo naquilo um sinal, afinal, coincidências não existem. Damião comentou que há tempos trabalha por ali e que, dependendo da época do ano, o lixo vai mudando de figura, como se, assim como as árvores e as pessoas, também compusesse a paisagem do Largo. Ah! Antes de terminarmos, ele comentou que seu irmão gêmeo se chama Cosme. Depois dessa, fomos pra Galeria Condor captar uns sons ambientes, tipo os dos games, dos pedidos na rotisseria e dos carrinhos eletrônicos. Na volta, já conversamos com Jacob da pamonha, que, entre milhões de colocações interessantes, nos disse que uma das coisas de que tem saudade é do tempo em que o povo vivia se reunindo no Largo pra fazer forró e encontros espontâneos, sem iniciativa estatal nem privada, apenas pelo simples prazer de se divertir. Jacob está pelas redondezas do Largo, como morador, desde 1974 e se lembra dos cinemas São Luíz e Politheama. Enquanto eu pegava a autorização dele, David, nosso sound designer, conversou com um senhor de 97 anos que contou sobre o açogueiro que cortava carne com machado e que deu nome ao Largo. O tom dele era de muita propriedade sobre essa informação, aumentando ainda mais a mítica sobre a existência desse estabelecimento comercial. Depois desse momento 'cultura oral', partimos prum papo com Aluísio (e sua inseparável Maria) da tapioca, que se gabou do quão sensacional é sua receita, a ponto de ter gente que, ao invés de ir à Feira de São Cristóvão, prefere ficar pelo Largo e comer uma goma por ali mesmo. Aluísio é um figura conversador e deixou escapar que antigamente fazia uns arrasta-pés na sua casa, pertinho dali, muitas das vezes por conta de amigos músicos que vinham tocar no Rio e que aproveitavam pra fazer uma jam session em sua residência. Pra fazer o tempo passar até a hora combinada de encontrar com o "Da Rosca", pegamos o metrô e gravamos aquele aviso sonoro "Próxima estação: Largo do Machado". Foi um passeio bem rápido, até o Catete só. Na hora combinada, pra encerrar nosso dia, batemos um papo com Erisvaldo Correia dos Santos, mais conhecido como "Da Rosca", ambulante que se auto-intitula humorista, pois sua forma de vender é divertida e original. Natural do Crato, Erisvaldo disse que, no início de sua jornada carioca, encontrou certo preconceito em relação ao seu ofício, mas que, hoje, mais do que nunca, é feliz até dizer chega queimando a rosca.



Por enquanto é isso.



Depois conto mais.



*A foto deste post foi gentilmente cedida por Flávia Cândida

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Três buxixos do Largo (ou Vocês sabiam? - parte 2)


. O banco em frente à Escola Amaro Cavalcanti é point de encontro mesmo em finais de semana. Um menino do turno da tarde que mora nas imediações afirmou ter visto um colega que mora em Austin na praça em pleno domingo. O povo da noite, mais animadinho, diz que, antes deles irem pra night, se encontram ali, para, só então, decidirem onde vão.

. Lá no final da Galeria Condor funcionaram as salas 1 e 2 do Cinema ‘Largo do Machado’. Há alguns anos, o imóvel foi vendido pruma Igreja Evangélica, que, mesmo de posse da propriedade, não pôde por lá abrir as portas pros cultos, por pressão dos comerciantes e amparo da lei, já que em local fechado de comércio não podem existir igrejas ou similares.

. Certa vez, uma senhora foi conversar com o “Da rosca”, rapaz citado no post anterior, que vende seus quitutes afirmando ter sido ele mesmo quem queimou a rosca. Pois bem, a senhora sugeriu a ele que chamasse a rosca de rodela, pois ficaria mais bonito e coisa e tal. “Da rosca”, muito franco, disse a ela: “A senhora que queime e venda sua rodela, eu fico com minha rosca”.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Vocês sabiam?


.Que em determinada loja da Galeria Condor, especializada em roupa íntima pra terceira idade, meninas novas só entram se for pra comprar presente pra avó? Ou, quando querem comprar algum soutien de enchimento, mandam a avó buscar?

. Que antes de ser a rotisseria que conhecemos de longa data, o árabe da Galeria se chamava ‘Lareira Gaúcha’?

. Que no prédio da Escola Amaro Cavalcanti tem várias passagens secretas e andares “falsos”, que hoje são trancados?

. Que uma ajudante de florista de uma das barracas do Largo já ganhou a vida separando minhocas de diferentes nacionalidades?

.Que o curau vendido quase na saída do metrô do Largo faz mais sucesso com o povo da terceira idade?

.Que o Aluísio, da barraca de tapioca, trabalha de domingo a domingo com a mulher? Que é ele quem faz os bolos caseiros que estão ali à venda? Que ele não dispensa o chapéu nordestino e que já saiu em matéria até do Bom Dia Brasil? E que pra mulher dele, D. Maria, higiene mental é sair pra fazer compras e viajar?

.Que à noite, na altura da porta da Escola, tem um rapaz que se auto intitula “Da Rosca”, que vende seus quitutes num tupperware afirmando que foi ele mesmo quem queimou a rosca? E que ele está prestes a lançar um livro? E que já foi ao programa do Jô e da Ana Maria Braga?

Não sabiam de nada disso, né? Nem eu.


Aguardem novos boletins.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Crimes ao Largo


Hoje vamos falar de acontecimentos que abalaram o Largo. O primeiro envolve a polêmica Carlota Joaquina, que nunca foi lembrada como uma figurinha fácil, por ter sido dona de uma imagem de bigoduda fogosa, autoritária e caliente. A impressão que se tem é a de que a frase “com mulher de bigode nem o diabo pode” foi inventada pra defini-la. Explico. Lá pelo início do Século XIX, como já tinha dito em post anterior, Carlota foi morar nas imediações do Largo do Machado pra ficar pertinho de seu amante, o excelentíssimo Fernando Carneiro Leão, nada mais nada menos que o primeiro presidente do Banco do Brasil. Dito isso fica fácil perceber que ele era o melhor partido da época, o que provavelmente fez com que a rainha, não satisfeita em viver seu affair, tenha sido acusada de ser a mandante do assassinato da esposa de Fernando, a Sra. Gertrudes Carneiro, morta enquanto chegava na Igreja Matriz da Glória por um meliante conhecido como “Orelha”. Claro que o caso não deu em nada, afinal, naquele tempo (como em todos os tempos desde que o mundo é mundo), mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo. Só a título de curiosidade, até da morte de D. João Carlota é suspeita. Não sem motivo, naturalmente, já que a rainha ao longo da vida construiu um histórico de conspirações, incluída aí a tentativa de impedir a ascensão do próprio marido ao trono brasileiro quando ele ainda era príncipe regente. Entregue para desposá-lo aos dez anos de idade, teve nove filhos, que, apesar de sua fama de devassa, foram todos atribuídos ao cônjuge. O tempo passou, a família real voltou de onde não devia ter saído e, mais de cem anos depois, república já estabelecida, no Hotel dos Estrangeiros, situado na esquina da Senador Vergueiro com a Barão do Flamengo e conhecido por abrigar celebridades, foi dizimado a facadas o General Pinheiro Machado (foto), famoso, entre outros feitos, por fundar o Partido Republicano Conservador. O assassino, um pedreiro, diz ter agido por conta própria, mas sempre pairou a suspeita de que o crime teve razões políticas. Interessante que, muito depois, já na década de setenta do século passado, o Largo também foi palco do necessário crime do progresso, materializado pelo advento do metrô, que, além de colocar abaixo muitas casas do tempo de Pereira Passos, fez da Rua do Catete um canteiro de obras. Claro que é exatamente assim que o progresso age e durante a reforma de Pereira Passos muita coisa também foi abaixo. Com os olhos de hoje, vemos as benesses do metrô como algo natural, mas há três décadas, muita gente pagou por isso. E caro. Não à toa a poesia de cordel de então dava a tônica da insatisfação: “Com as obras do metrô/Veio o grande sofrimento/Os moradores dos bairros/Chegaram à cruz do tormento/Glória/Catete e Flamengo/Estão peor que Realengo/Dentro de um clima nojento/Comerciantes também/Sentem o peso da cruz/Catete vive nas trevas/Glória e Flamengo sem luz/É esta situação/Desta grande região/Esquecida por Jesus”. Fora o transtorno total, o Largo perdeu cinco palmeiras originais, alguns operários e um cadinho de dignidade. Mas, como nada é só bom nem ruim, os lambe-lambes (que não existem mais) lucraram bastante por conta da enorme clientela de “paraíbas” que ali trabalhavam e que por ali mesmo registravam seus instantâneos ao largo.
Fontes:


. PEREGRINO, Umberto: Crônica do bairro do Catete: histórias e vivências. RIO ARTE, RJ, 1986.

. MOREIRA LEITE, Miriam; BARROS MOTT, Maria Lúcia; APPENZELLER, Bertha K.: A mulher no Séc. XIX. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, SP, 1982.

. VAINFAS, Ronaldo (Org): Dicionário do Brasil Imperial, OBJETIVA, RJ, 2002.

sábado, 11 de setembro de 2010

Por uns cinemas de rua a mais


A galera mais novinha que hoje vai ao cinema no Largo do Machado e só tem como opção as salas do São Luíz localizadas dentro de uma galeria, nem imagina que por ali já existiram vários cinemas. O Politheama foi um exemplar dos ‘poeiras’ e funcionava ao lado de onde hoje é o Bob’s, o Azteca ficava na Rua do Catete, entre a Corrêa Dutra e a Buarque de Macedo e tinha uma arquitetura com motivos chicanos, tendo sido inaugurado em 1951, muito pra escoar a prestigiada produção cinematográfica do México da década de 40. A sessão inaugural foi com a fita ‘D.Diabla’, com Maria Félix. Infelizmente, um incêndio detonou os arquivos sobre o local. Já o São Luiz, que tem esse nome devido ao seu dono, o Sr. Luiz Severiano Ribeiro, foi um projeto visionário pra época, pois seria a primeira das casas de luxo situada para além do Centro, mais precisamente, da Cinelândia. Inaugurado em 1937, com uma programação musical seguida da sessão de ‘Ela e o Príncipe’, com Tyrone Power, logo virou o must do bom gosto carioca e os frequentadores costumavam comparecer às sessões de paletó, colarinho e gravata. O fato é a casa pedia esse tipo de apreço indumentário: a sala de projeção era em formato de concha acústica, a sala de espera, um luxo só, cheia de espelhos, mármores e plantas vivas, e até mesmo a revista Fonfon (Jan/1938), especializada em ditar tendências, chegou a definir o cinema como o grande propulsionador da indústria cinematográfica brasileira, pois permitia que o carioca, antes de ir à praia, visse seus artistas prediletos num cinema confortável e moderno. Sim, porque naquele tempo, a boa era a sessão dedicada às pré-estreias, nos domingos, sempre às 10h. Inclusive, quando ‘Rock around the clock’ foi exibido, Bill Halley, o protagonista, veio ao Rio somente para a ocasião, incitando a galera do rock, que, em transe, chegou a arrancar cadeiras e a encher os banheiros (femininos, naturalmente) de inscrições animadinhas feitas com batom vermelho. O último filme que passou no São Luiz foi ‘Apocalipse Now’, em 1980, imediatamente antes da demolição de sua bela edificação por conta do metrô. Depois de encerradas as obras, o São Luiz ressurge já nesse shape, dentro de uma galeria. Agora um fato que não me sai da lembrança: dentro da Galeria Condor tinha um cinema, o Largo do Machado, onde eu, louca pelo John Travolta, falsifiquei, junto com uma amiguinha, a carteirinha da escola pra passar por 14 anos e ver ‘Os embalos de sábado à noite continuam’. Isso aconteceu na década de 80, mais precisamente em 84 e o lanche depois da sessão foi no Bob’s, numa época em que o sanduíche de queijo com banana arrasava no recreio. Hoje em dia, esse cinema foi mais um que virou igreja evangélica, o que nos leva a pensar que, mesmo localizado dentro de uma galeria sem glamour nem perfumaria, o São Luiz é um dos representantes da resistência ao genocídio cultural das salas de rua.
Fonte:
.PEREGRINO, Umberto: Crônica do bairro do Catete: histórias e vivências. RIO ARTE, 1986.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Atrás do bonde elétrico só não ia quem já tinha morrido


Estava eu a procurar referências sobre o Largo nas obras dos grandes mestres da literatura brasileira e me dou conta de que o mais interessante neste processo é justamente ver como momentos pontuais da história civilizatória daquelas bandas foram por eles retratadas. Mas antes de falar das pérolas dos mestres, é bacana pensar que, desde que entraram em circulação no trecho entre a Rua do Ouvidor e o Largo do Machado, em 1868, os bondes substituíram as diligências, dando um cunho coletivo ao conceito de transporte, sem perder as reminiscências, como a tração feita por burros. Ao todo, eram nove as empresas que prestavam esse serviço, sendo a Jardim Botânico (conforme falado em postagem anterior) a maior de todas, com uma frota de 90 bondes e 1300 animais. Foi assim por mais de duas décadas, até que em 1892 acontece a viagem inaugural do primeiro bonde elétrico de quatro rodas com a presença do presidente Marechal Floriano Peixoto. Como a gente sabe, mas às vezes esquece por puro distanciamento histórico, a eletricidade naquele tempo era um assombro, um espanto, um sinal de progresso, que trazia consigo uma aura ao mesmo tempo fascinante e assustadora. A prova disso é que tinha escrito nos espaldares dos bancos a seguinte mensagem: “A corrente elétrica nenhum perigo oferece aos senhores passageiros”. Bastante sintomática desse estado de contemplação é a descrição feita por Machado de Assis sobre o impacto nele provocado ao assistir à performance do motorneiro que conduziu a viagem inaugural: “Sentia-se nele a convicção de que inventara não só o bonde elétrico, mas a própria eletricidade”. Percebemos, em apenas uma frase, a dimensão da recepção da novidade por aqui. Já Arthur Azevedo, munido de um escárnio que lá no fundo parecia esconder um certo temor, declarou: “Estou spleenético e tétrico/Sorumbático e sombrio/Vi de perto o bonde elétrico/Não faço versos, não rio”. Provavelmente para animar os passageiros e dissolver o clima de tensão, nessa época, na fachada da Estação do Largo do Machado, tinham mensagens que associavam o transporte a uma ideia de frescor e escapismo: “Bondes em quantidades para as praias do Leme e Ipanema. O luar é encantador, sendo as noites muito frescas, graças aos ares do alto mar”. O fato é que, passado o susto inicial, os bondes se firmaram como um importante meio de transporte coletivo, e, também, de agenciamento de programas por parte das prostitutas que atendiam nas pensões dedicadas a esta prática, localizadas, em sua maioria, no trecho entre a Lapa e a Glória. As moças angariavam clientes no ir e vir dos trilhos e já saltavam com os mesmos nas portas dos estabelecimentos, oferecendo seus serviços já em terra firme, naturalmente. Mas não só às profissionais do sexo que os bondes serviam no aspecto da comunicação interpessoal. As moças casadoiras das décadas de vinte e trinta, na saída das missas das 11h de domingo na Igreja Nossa Senhora da Glória, usavam os pontos dos bondes na Praça como local pra dar uma pinta e paquerar distintos cavalheiros, no intuito de futuramente dar-lhes a honra de suas prendas. Sem repetir nem chapéu nem vestido, elas aproveitavam a ocasião religiosa para fazer sua parada de elegância e, quem sabe, semear um bom casamento. Rezando com tanto afinco, muitas conseguiram. Depois que pararam de circular, os trilhos dos bondes foram encobertos pelo asfalto ou simplesmente retirados. Quando as obras do metrô avançaram rumo ao Largo, muitos trilhos que ainda estavam por lá soterrados foram definitivamente retirados. Mas sobre as obras do metrô eu falo depois.
Fontes:
. MOREIRA LEITE, Míriam; BARROS MOTT, Maria Lúcia; APPENZELLER, Bertha K: A mulher no Séc. XIX. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, SP, 1982
. PEREGRINO, Umberto: Crônicas do bairro do Catete: histórias e vivências. RIO ARTE, RJ, 1986.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O lamismo


O Largo, mesmo antes da reforma preconizada pela administração do Prefeito Pereira Passos, nos primeiros anos do século XX, já era ocupado por um comércio importante, incluindo aí dois Cafés tradicionais: O Lamas e o Araponga, sendo o último tradicionalmente especializado em comidas frias, bebidas nacionais e estrangeiras, além de também ser o depósito do então renomado “Leite Rio Negro”. Porém, quem bravamente vem resistindo a reformas e a drásticas mudanças econômicas é o Café Lamas, que, além de não ter fechado nunca suas portas (desde 1874), mantém o espírito boêmio e hedonista que lhe serve de cartão de visitas. Até as obras do metrô da década de setenta, o Café ficava no Largo, tendo depois sido transferido pro seu endereço atual, na Rua Marquês de Abrantes. Como de hábito, abre todos os dias, só parando em dia de Natal e na segunda e terça de carnaval.

Muitos foram os intelectuais e artistas a utilizá-lo não só como palco de inúmeras farras, mas, também, como escritório e (pasmem!) casa de penhores. Sim, houve um tempo em que o proprietário aceitava o empenho de relógios, dicionários, tratados de Direito e afins como garantia para pequenos empréstimos. Aliás, de forma curiosa, o fundador do Café, Constantino Lamas, quase não aparecia por lá e, quando dava as caras, não bebia.

De todas as presenças ilustres que pelo Lamas passaram (e ainda passam), podemos citar, entre tantos outros: Machado de Assis, Afrânio de Melo Franco, Getúlio Vargas (quando ainda era deputado), Rubem Braga, Haroldo de Campos e Luiz Edmundo, o último, autor do livro “O Rio de Janeiro do meu tempo”, de 1900, que, através de uma compilação de crônicas cheias de conteúdo histórico, traça um corte etnográfico de nossa cidade no início do Século XX. Foi Edmundo quem criou o termo “Lamismo”, comparando a frequência ao Café a uma religião. As diretrizes para participar do 'culto' eram:

1) Beber (o chopp)
2) Postar-se no altar (as mesas)
3) Jogar sinuca na sacristia (localizada no salão dos fundos do antigo Lamas)
4) Saber rezar (conversar) com fervor

De todas as histórias pitorescas em torno do local, duas chamam particular atenção: a primeira data da inauguração da estátua de Duque de Caxias, que ficou pelo Largo entre 1900 e 1955. A ocasião era pra lá de ilustre e, para romper a fita inaugural, estiveram presentes os presidentes do Brasil (Campos Sales) e da Argentina (General Rocca). Pois bem, na madrugada anterior, já em nível etílico avançado, um grupo de lamistas antecipou-se ao ato oficial, realizando uma ‘cerimônia’ de saudação à Duque de Caxias, com direito a rompimento da fita inaugural, tudo no maior deboche. Claro que isso não impediu que no dia seguinte a cerimônia transcorresse normalmente. A segunda história (também do início do Século XX) data da vinda de Santos Dumont ao Rio de Janeiro, mas, para contá-la, temos que lembrar que, na esquina que delimita o Largo com a Rua das Laranjeiras, existiu, nos primeiros anos do Século XX, um rendez-vous chamado Parque Fluminense, um vasto parque de diversões, no estilo Luna Park de Paris, com rinque de patinação e teatro, por onde passaram inúmeras companhias estrangeiras. O local era frequentado pela alta roda e visado pelos lamistas (principalmente os menos abastados). Pois bem, Santos Dumont estava chegando da França, logo após haver descoberto a direção dos balões, e sua presença provocou um frisson de proporções estelares. Para manter o status de local antenado às demandas culturais da cidade, os proprietários do Parque Fluminense ofereceram ao aviador um espetáculo em sua homenagem, regado a muito luxo e riqueza. Enquanto isso, na sala de justiça (ops, no Lamas), um lamista chega ao Café na companhia de um sósia do Santos Dumont tão perfeito, mas tão perfeito, que em poucos minutos havia uma avalanche de boêmios querendo acompanhá-lo ao Parque, para usufruir, nem que por uma noite, das delícias do local. Como de fato o moço muito se parecia com o original, a comitiva não encontrou problemas em entrar no recinto e, ao ser convidada pra ocupar o camarote do teatro, requisitou, antes, algo de sólido e uma chamagnha gelada, pois o Sr. Dumont havia jantado cedo e era provido de grande apetite. É claro que no final chegou o original pra acabar com a brincadeira e alguns dos boêmios saíram do Parque com ferimentos leves, mas, em compensação, com a alma lavada. Diz-se que em São Paulo um grupo de estudantes teve o mesmo comportamento pilhérico de escolher um colega para se fazer passar pelo aviador.

Até hoje o Lamas é muito festejado pela intelectualidade e pela classe artística, tendo mantido o elán mesmo quando o Rio de Janeiro deixou de ser a capital e houve um esvaziamento da clientela do palácio presidencial do Catete. A sensação que se tem é a de que o tempo, apesar de passar, não mexe em determinadas estruturas que compõem o entrelaçamento social do local. Só pra dar um exemplo disso, outro dia, vi no facebook de um amigo umas fotos da confraternização em torno do último expediente de um dos garçons antes de sua aposentadoria. O clima era de festa e os habitues de hoje só vêm a confirmar que o lamismo é uma seita que só se fortalece.

Fontes:
·Perergrino, Umberto: Crônica do bairro do Catete: histórias e vivências. RIOARTE, 1986.
·Edmundo, Luiz: O Rio de Janeiro do meu tempo. 1900.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A arquitetura dissecada: Igreja, estátua, bonde e cinema.


Carlota Joaquina em sua estada tupiniquim fundou duas pequenas capelas nos arredores do Largo: uma no “Caminho Novo de Botafogo” (hoje Rua Marquês de Abrantes) e outra na Rua das Laranjeiras, ambas (não por acaso) em logradouros onde tinha estabelecido residência própria. Assim, tão logo se criou a Paróquia da Glória (1840), a capela da Rua das Laranjeiras foi convertida em Igreja da Matriz. Não essa que vemos hoje, com um ponto de ônibus na frente, torre e batistérios, mas a inicialmente projetada em 1842, em estilo neoclássico e inspirada na St. Martin Church de Londres. Paralelamente, em 1869, o Largo foi ajardinado à francesa (com figueiras e palmeiras reais) e gradeado (com chafariz central) pelo paisagista Auguste Marie François Glaziou, tendo permanecido com a mesma conformação até 1897, quando teve seu chafariz central substituído pela estátua equestre de Duque de Caxias. Sobre essa coisa das estátuas, cabe um aparte, que pode parecer tolo, mas que, de todo modo, vale, nem que seja como flashback: naquele tempo, há mais de um século atrás, antes de todo o bombástico fetiche midiático provocado pelo cinema e pela televisão, as estátuas tinham o poder de cravar no imaginário coletivo feitos e acontecimentos que muitas das vezes soavam muito mais heróicos do que de fato haviam sido. Pois bem, em 1949, a tal estátua equestre de Duque de Caxias tomou seu rumo definitivo (em frente ao Palácio Duque de Caxias, no Campo de Santana) e deu lugar a um chafariz feito de cimento e mármore, onde lá no alto figura a valiosíssima estátua da Virgem da Conceição, toda trabalhada no mármore italiano por Antônio Canoa e doada pelo Vaticano à Arquidiocese do Rio. Podemos atribuir à distância entre o chão e a Santa a façanha da mesma continuar intacta ao longo de meio século. Mudando um pouco de assunto e detalhando um post anterior deste blog intitulado ‘Os bondes’, a “Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico”, inaugurada em 1862, foi demolida em 1938, tendo em seu lugar sido construído o Cinema São Luiz, inspirado em um similar da Broadway. Essa edificação glamourosa acabou sendo posta abaixo pelas obras do Metrô da década de setenta e dando lugar, posteriormente, a um centro comercial com dois cinemas dentro. Ali nos arredores, sempre acompanhando a movimentação cinematográfica, vem o lendário restaurante ‘Lamas’ (hoje localizado na Rua Marquês de Abrantes), conhecido por nunca fechar suas portas e por ser freqüentado, há mais de um século, por uma boemia seleta, incluindo aí a conhecida ‘Geração Paissandu’, composta por politizados cinéfilos frequentadores da vizinha (e homônima) sala de cinema na década de 60.